quarta-feira, março 29, 2006

Alcunha (III)

Tinha um conjunto de amigas com quem partilhara a cama, quase sempre por uma noite só. Ele era simpático, sabia anedotas e fazia bons "bloody mary". Por isso só muito tarde percebeu que nas suas costas elas partilhavam, entre risinhos, impressões das respectivas experiências. Daí nasceu a alcunha.

«Mas por quê "carteirista"?» perguntou, à mais leal e constante dessas amigas.
«Não queres saber, a sério», garantiu.
Ele forçou: «Agora que já descobri tens de contar. Não me podes deixar com esta dúvida, vá lá!».
E ela, evitando que o sorriso transbordasse, confessou: «Porque és rápido. Porque nunca damos por nada. E porque, mesmo fartas de sermos avisadas, há sempre uma que acaba enganada entre a luz e a pontinha.»

Sorte

...Longe de estar convencida, ela contra-atacou: «Olha que tinhas de ter muita sorte para acertar no sítio...»

Duas costelas

...E então ele acabou com a discussão, implacável: «Tivesse eu menos dez anos e duas costelas e mostrava-te o que é um broche!»

terça-feira, março 28, 2006

Slogan gigolo-realista

"Segundos de loucura, milímetros de prazer"

quarta-feira, março 22, 2006

Livre

Andei três anos a tirar-te do corpo, como quem te vomita a prestações. Ressacava-te nas ocasiões mais inesperadas: tremores e suores frios em pacatos almoços de família, despertares alucinados a meio da noite, tesões fulminantes à hora do lanche, em pleno escritório. Circulavam-me no sangue pedaços de ti, que por vezes encalhavam em pontadas bruscas, como otites da memória. Os dedos repuxando o lençol quando me afundava entre as tuas coxas. Os teus olhos semicerrados, emergindo do meu umbigo. A cova das bochechas, aparecendo e desaparecendo ao ritmo ondulante da tua cabeça.

Um dia percebi que estava limpo. Tinha passado cinco dias seguidos sem arrepios involuntários. Já não era a tua cara que me aparecia a meio da noite, gemendo palavras obscenas. Já não era a espiral da tua língua que eu esperava encontrar em todas as bocas húmidas, não era tua a rigidez macia das nádegas com que alimentava os dedos. Nada de ti, nunca tu, nunca mais.

Então juntei todos os teus pedaços dispersos e, com lentos movimentos da mão direita, orgulhosa da sua liberdade reconquistada, arquivei-te na minha vida como um puzzle resolvido. O orgasmo doeu-me durante uma semana, no escroto, no interior das coxas, nas virilhas, na memória. Mas foi um preço justo. Ninguém pode foder como nós impunemente.

sábado, março 18, 2006

Maçãs verdes (II)

De noite andava pelas ruas com má iluminação. Entrava nos prédios com portas encostadas, subia os degraus com passos cuidadosos de burocrata, a respiração suspensa. Encostava-se num canto do patamar, fechava os olhos e escutava. Demorava uns três minutos a adaptar-se ao silêncio e à escuridão. Depois começava a ouvir sinais de vida, nos andares em frente, acima ou abaixo. Quase sempre tosses, televisões abafadas, clics de interruptor, descargas de autoclismo, ressonares intermitentes. Ao fim de um quarto de hora saía e regressava à rua, de mãos nos bolsos, olhando os homens amarelo-fluorescente a mangueirar ruas e passeios, vigiados pelo clonc-clonc-pfshht do camião do lixo.

Vez por outra ficava mais tempo, a reconstituir uma conversa apanhada a meio, ou um princípio de discussão. Mas se ocasionalmente surpreendia uma gargalhada de mulher sintonizava o ouvido e ficava à espera. Alguns minutos mais tarde chegavam sempre as palavras sussurradas, os rangidos e as ladainhas do gozo reprimidas nas gargantas. Os orgasmos audíveis decepcionavam-no sempre: demasiado abruptos, demasiado tristes, espremidos entre os tiros e explosões do filme da madrugada e as tosses cavernosas dos fumadores encartados, cadáveres em precária. Preferia aquelas poucas vezes em que podia continuar de olhos fechados, imaginando adormecer embalado pelo vai-vém da cidade, enquanto os sons se diluíam discretamente nos tic-tac dos relógios de parede e o silêncio se reconstruía à sua volta, empurrando-o para a saída.

Na rua enchia os pulmões de ar e sentia-se vivo. Voltava a casa, antes do primeiro chilrear de pardais, cheio de coisas para contar. Mas em vez disso detinha-se à entrada do quarto, até se acalmar com o cheiro a maçãs verdes que vinha da cama. Depois ia para o chuveiro, o clonc-clonc-pfshht do camião do lixo na cabeça, a marcar o ritmo dos gestos com que celebrava a solidão.

sexta-feira, março 17, 2006

Maçãs verdes

Chegou a casa com tanto para contar que foi direito ao chuveiro, para ejacular rapidamente, com manipulações vigorosas e decididas. Só depois se enfiou na cama, discreto e silencioso, para não a acordar. O pescoço dela cheirava a maçãs verdes.

Nessa noite teve um sonho esquisito: estava na sala de aula do 9º ano, os colegas eram os mesmos, mas todos eles 20 anos mais gordos. Uma professora exigia-lhe que descrevesse os seus sentimentos acerca do sexo. E ele, envergonhado com a erecção indiscreta que apontava ao tampo da carteira, só conseguia murmurar, fixando os olhos no chão de tacos: «Um dia elas vão perceber que eu tinha razão».

Acordou de madrugada, cansado e inseguro. Ela olhava-o, ainda ensonada, ainda a cheirar a maçãs. Deram uma queca urgente e angustiada, com um pouco de dor sabiamente repartida pelos dois. Quando acordou ela já tinha saído. E tudo o que ele tivera para contar tinha deslizado pelo ralo, em fiapos de frases solitárias, esbranquiçadas e inúteis.

sábado, março 11, 2006

Desencontro

Ele distribuía bocas de sexo pelas amigas. Ela distribuía a boca pelo sexo dos amigos. Foi por muito pouco que não se conheceram e viveram felizes para sempre.

quarta-feira, março 08, 2006

Body Heat

Um ruído de espanta-espíritos vindo da varanda. A mão direita da Kathleen Turner a repuxar o lençol branco em movimentos sincopados. A câmara a recuar, a apanhá-la a meio corpo, os cabelos revoltos, a cabeça pousada na cama, virada para o lado esquerdo, a esconder-nos a cara. A cara que se vira agora para nós, distorcida, boca entreaberta, narinas dilatadas. Fora do plano, atrás dela, William Hurt pergunta-lhe em voz suave: «Are you all right, now?». De olhos fechados e respiração ofegante, Kathleen Turner responde entre golfadas de ar sorvidas à pressa: «...Don't... stop!»

Se alguma vez tiver de explicar alguma coisa, talvez comece por aqui.

segunda-feira, março 06, 2006

Andaime

Todos as manhãs, entre as oito e meia e as nove e um quarto, subia ao andaime daquela obra parada, as calças rotas, a t-shirt do Feira Nova e um balde vazio na mão. Depois olhava para o passeio, lá em baixo e esperava.

Esperava as morenas («LINDAS PERNAS, Ó BOA! A QUE HORAS ABREM?») as louras («SÓ ACREDITO QUANDO TE VIR A PINTELHEIRA, MINHÓRDINÁRIA!») as pretas («TIRAVA-TE DA MISÉRIA E PUNHA-TE BEM NA VIDA, COMEÇAVA ERA POR DAR-TE UM ANDAR NOVO») as novas («DE CERTEZA QUE JÁ PINTAS, AMORZINHO... JÁ TIVESTE ALGUM NA MÃO?») as velhas («LIMPAVA-TE AS TEIAS DE ARANHA QU'ERA UM GOSTO...») as lindas («DAVA-TE UMA EM PARAFUSO E A OLHAR PARA O ESPELHO...») as feias («EMBRULHAVA-TE NA BANDEIRA E ERA MESMO À CANZANA, POR AMOR À PÁTRIA!»).

Depois, quando a voz já começava a falhar-lhe, descia do andaime e ia calmamente até ao estacionamento subterrâneo. Abria o BM, chegava as raquetes para o lado, tirava o fato do porta-bagagens, mudava-se na casa de banho e seguia para o escritório, onde chegava sempre cinco minutos antes das dez, compondo o nó da gravata. Cumprimentava a secretária («alguma novidade, dona Augusta?») e fechava-se no gabinete, a tempo da primeira videoconferência do dia.

Às vezes, entre relatórios, powerpoints, cotações e mails de louras a fazerem vários tipos de acto com vários tipos de quadrúpedes, deixava o olhar fugir pela janela do 23º andar. Via os andaimes, os operários cada vez menos atarefados, adivinhava as louras, morenas, novas, velhas, lá em baixo, deslizando pelo passeio em passos minúsculos de gueixa. Quando se distraía demasiado tempo imaginava voar, pairando por cima delas, invisível. Depois ajeitava o nó da gravata e aquilo passava.