sábado, março 18, 2006

Maçãs verdes (II)

De noite andava pelas ruas com má iluminação. Entrava nos prédios com portas encostadas, subia os degraus com passos cuidadosos de burocrata, a respiração suspensa. Encostava-se num canto do patamar, fechava os olhos e escutava. Demorava uns três minutos a adaptar-se ao silêncio e à escuridão. Depois começava a ouvir sinais de vida, nos andares em frente, acima ou abaixo. Quase sempre tosses, televisões abafadas, clics de interruptor, descargas de autoclismo, ressonares intermitentes. Ao fim de um quarto de hora saía e regressava à rua, de mãos nos bolsos, olhando os homens amarelo-fluorescente a mangueirar ruas e passeios, vigiados pelo clonc-clonc-pfshht do camião do lixo.

Vez por outra ficava mais tempo, a reconstituir uma conversa apanhada a meio, ou um princípio de discussão. Mas se ocasionalmente surpreendia uma gargalhada de mulher sintonizava o ouvido e ficava à espera. Alguns minutos mais tarde chegavam sempre as palavras sussurradas, os rangidos e as ladainhas do gozo reprimidas nas gargantas. Os orgasmos audíveis decepcionavam-no sempre: demasiado abruptos, demasiado tristes, espremidos entre os tiros e explosões do filme da madrugada e as tosses cavernosas dos fumadores encartados, cadáveres em precária. Preferia aquelas poucas vezes em que podia continuar de olhos fechados, imaginando adormecer embalado pelo vai-vém da cidade, enquanto os sons se diluíam discretamente nos tic-tac dos relógios de parede e o silêncio se reconstruía à sua volta, empurrando-o para a saída.

Na rua enchia os pulmões de ar e sentia-se vivo. Voltava a casa, antes do primeiro chilrear de pardais, cheio de coisas para contar. Mas em vez disso detinha-se à entrada do quarto, até se acalmar com o cheiro a maçãs verdes que vinha da cama. Depois ia para o chuveiro, o clonc-clonc-pfshht do camião do lixo na cabeça, a marcar o ritmo dos gestos com que celebrava a solidão.