segunda-feira, março 06, 2006

Andaime

Todos as manhãs, entre as oito e meia e as nove e um quarto, subia ao andaime daquela obra parada, as calças rotas, a t-shirt do Feira Nova e um balde vazio na mão. Depois olhava para o passeio, lá em baixo e esperava.

Esperava as morenas («LINDAS PERNAS, Ó BOA! A QUE HORAS ABREM?») as louras («SÓ ACREDITO QUANDO TE VIR A PINTELHEIRA, MINHÓRDINÁRIA!») as pretas («TIRAVA-TE DA MISÉRIA E PUNHA-TE BEM NA VIDA, COMEÇAVA ERA POR DAR-TE UM ANDAR NOVO») as novas («DE CERTEZA QUE JÁ PINTAS, AMORZINHO... JÁ TIVESTE ALGUM NA MÃO?») as velhas («LIMPAVA-TE AS TEIAS DE ARANHA QU'ERA UM GOSTO...») as lindas («DAVA-TE UMA EM PARAFUSO E A OLHAR PARA O ESPELHO...») as feias («EMBRULHAVA-TE NA BANDEIRA E ERA MESMO À CANZANA, POR AMOR À PÁTRIA!»).

Depois, quando a voz já começava a falhar-lhe, descia do andaime e ia calmamente até ao estacionamento subterrâneo. Abria o BM, chegava as raquetes para o lado, tirava o fato do porta-bagagens, mudava-se na casa de banho e seguia para o escritório, onde chegava sempre cinco minutos antes das dez, compondo o nó da gravata. Cumprimentava a secretária («alguma novidade, dona Augusta?») e fechava-se no gabinete, a tempo da primeira videoconferência do dia.

Às vezes, entre relatórios, powerpoints, cotações e mails de louras a fazerem vários tipos de acto com vários tipos de quadrúpedes, deixava o olhar fugir pela janela do 23º andar. Via os andaimes, os operários cada vez menos atarefados, adivinhava as louras, morenas, novas, velhas, lá em baixo, deslizando pelo passeio em passos minúsculos de gueixa. Quando se distraía demasiado tempo imaginava voar, pairando por cima delas, invisível. Depois ajeitava o nó da gravata e aquilo passava.