sexta-feira, janeiro 27, 2006

Paredes meias

Ela miou, ele grunhiu; ela baliu, ele roncou; ela latiu, ele rosnou; ela relinchou, ele ganiu. Quando finalmente se vieram, num chilreio de pardais, ele virou-se na cama e tentou dormir. Nessas ocasiões sentia-se uma espécie de guarda-nocturno da arca de Noé.

terça-feira, janeiro 24, 2006

Nojo

Nunca se masturbava em frente ao espelho. Dava-lhe nojo aquele velho devasso a abusar do miúdo que continuava a morar na sua cabeça.

domingo, janeiro 22, 2006

De vez em quando

Um dia, fartos de bocejos e olheiras carregadas, falaram francamente. Ele pôde enfim admitir que passava inúmeras noites em claro, tentando calcular quantas vezes teria ela simulado orgasmos em sua intenção. E ela, por seu lado, reconheceu que fingia sempre dormir, quando ele chegava a casa tarde, o cheiro de outras mulheres entranhado em todos os poros e pêlos.

Essa conversa franca trouxe-lhes a saída para o problema. Ela deixou de fingir que dormia quando ele chegava a casa tarde. Agora dormia mesmo, cansada do esforço de simular orgasmos apenas com outros homens. Ele, por sua vez, passou a fazer de conta que trazia o cheiro de outras mulheres entranhado em todos os poros e pêlos, quando na verdade só trazia sono e saudade. A partir daí passaram a dormir muito juntinhos. E de vez em quando eram quase felizes.

Campanha eleitoral

«Sou uma pessoa ponderada!» protestou ela, desabotoando-lhe a braguilha.

terça-feira, janeiro 17, 2006

Romântico

Ao fim de cinco minutos de conversa já era claro que não ia dar. Ela achava-o triste, silencioso e sombrio enquanto ele se via como sério, misterioso e profundo. Não havia muito a esperar de uma mulher que usava a palavra «romântico» como sinónimo de «retardador de quecas», pensou. Por isso foi para casa, abusar do corpo em movimentos tristes, silenciosos e sombrios. Três andares abaixo ela acendia velas, à volta da banheira, para um banho romântico antes de dormir.

sábado, janeiro 14, 2006

Em resumo

Em resumo, disse ela, o meu problema era não conseguir sublimar a agressividade durante o sexo. Não que eu fosse excessivamente bruto, disse ela, ou que alguma vez a tivesse magoado a sério. Mas a coisa acabava por tornar-se desconfortável, não tanto pelo que eu fazia, mas pela expectativa do que eu pudesse vir a fazer, uma vez que a partir de certa altura, disse ela, eu me transformava numa pessoa diferente, mais impulsiva, mais animal. E por isso, disse ela, não queria mais, estava farta do meu registo, e achava que eu devia tentar perceber o que se passava de errado comigo para eu reagir assim de cada vez que conseguia persuadir uma mulher a tirar a roupa. Em resumo, disse ela, sexo com um bocadinho de agressividade pode ser bom, mas eu não sabia dosear-me na horizontal.

Não me fodas!, disse eu. E assim foi.

terça-feira, janeiro 03, 2006

Câmbio

Ela tinha um ar frágil e indefeso, com olhos assustados como o de um esquilo. Todo o seu corpo pequeno era um apelo à protecção, mesmo quando sorria. Olhar para ela comovia-o e despertava-lhe um desejo avassalador de ser bom. Por isso, deixou-se submergir por uma onda calorosa de ternura no momento em que lhe soergueu as ancas. Acariciou-lhe os pulsos presos atrás das costas, junto aos rins, desenhou-lhe o contorno da cabeça pousada na almofada, afundou o polegar na cova da sua nuca - no que lhe pareceu ser, por uma fracção de segundo, o gesto mais íntimo alguma vez experimentado com uma mulher.

Depois cruzou o olhar por instantes com os olhos assustados e meigos que tentavam ver o que se passava atrás. Ao fitá-la assim, totalmente exposta e vulnerável, a cabeça a coroar a pirâmide formada pelas coxas, nádegas e rins, sentiu um nó na garganta. O coração bombeava compaixão, meiguice e desejo pelo seu corpo, em batidas regulares, cada vez mais audíveis. Inclinou-se para a frente, as unhas sulcando-lhe as costas macias, a boca aproximando-se do ouvido direito, o que não estava pousado na almofada. Sussurrou: «Vou magoar-te um bocadinho, está bem?». Os olhos assustados e meigos transfiguraram-se, semicerrados numa expressão predadora: «Sim, querido. Sabes que assim são mais 100 palhaços não sabes?».

segunda-feira, janeiro 02, 2006

Teorema de Faiblebite

Um homem só tem hipóteses de envelhecer com dignidade se Deus, na sua infinita misericórdia, lhe tirar a memória antes de lhe tirar o tesão.